Imunização: a “simpoiese” e a crise da linguagem ocidental
A diferença entre as narrativas mítico-religiosas (baseadas em contos antigos que pretendem explicar a origem e o destino de tudo) e aquelas produzidas por ideologias (que constroem seus argumentos por meio de arquiteturas de pensamento supostamente capazes de entender e explicar o mundo e as suas mudanças) daquelas das formas de conhecimento criadas pela ciência, reside precisamente na recusa, da parte desta última, do princípio da verdade. Enquanto as narrativas mítico-religiosas e ideológicas tendem a defender suas construções explicativas, acreditando que sejam verdadeiras e irrefutáveis, a ciência e os cientistas, de Galileu em diante, são adeptos da lógica da descoberta e portadores de um método falível que força o conhecimento a se atualizar e a mudar continuamente, adaptando-se, de tempos em tempos, ao decorrer das inevitáveis transformações. Ao contrário dos padres e dos pensadores, os cientistas estão abertos ao novo e ao desconhecido.
Os efeitos devastadores da pandemia de coronavírus não afetam apenas nossa saúde e nossas vidas em todos os seus aspectos, a nível social, econômico, político e biológico, mas, também, agem na nossa esfera cognitiva e nas nossas representações da realidade. O vírus, portanto, atua tambem em nossa concepção do mundo. Não age apenas no nosso corpo, pois nao é externo ao nosso ser.
Diante de uma pandemia e de um novo vírus, existem duas formas principais de reação: a defesa ou a mudança. A primeira opção, baseada no princípio da centralidade do ser humano, (o único ser inteligente, filho de Deus, animal político, arquiteto de seu destino e governante absoluto do planeta) nos leva a pensar que o vírus é algo externo, uma forma não claramente identificável de existência contaminante e perigosa. A reação que essa opção nos oferece é a pandemia do medo, a identificação do vírus como perigo e mal absoluto e a luta pela sua total eliminação e pela restauração do nível anterior da ordem (natural?).
A segunda opção, a mudança, é a resposta que todo organismo vivo produz antes do advento de um novo vírus e que é conhecido pelos cientistas como sistema imunológico biológico. Aos olhos da ciência, todo indivíduo e todo organismo vivo é constituído por milhões de vírus, milhões de bactérias, micróbios e muitas outras entidades. Todos os seres vivos são um "compost" (D. Haraway) de organismos vivos, constituindo-se como uma rede de redes de entidades vivas e interagentes. De acordo com esse conceito, os vírus não são realidades externas e separados de nós, mas, ao contrário do que acredita o senso comum, são parte integrante do nosso corpo, desempenhando uma função importante: estimular a mudança e o abandono do nível de equilíbrio consolidado. O vírus é capaz de se reproduzir apenas dentro de uma célula hospedeira; portanto, é geralmente considerado um parasita, mas a relação que é estabelecida entre ele e o organismo que o recebe é complexa.
De acordo com o princípio do sistema imunológico adaptativo, perante um novo vírus, o nosso organismo não reage agressivamente, opondo-se a ele, mas, pelo contrário, o hospeda, oferece-lhe espaço e cidadania dentro dele, tornando-o parte de si mesmo e iniciando, ao mesmo tempo, com este uma interação dinâmica.
O resultado será a implementação de um processo heteronômico que imporá uma mudança adaptativa e uma transformação radical em todo o organismo ou, caso contrário, sua própria morte. Somente através de sua transformação o organismo adquirirá imunidade, tornando o novo vírus inofensivo e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma memória imunológica que o defenderá deste também no futuro.
O vírus (do latim veneno) é estabelecido como um mecanismo de alteração que, se não levar à morte do organismo hospedeiro, o obriga a se transformar, conseguindo alterar sua condição inicial. Onde há virus e vida, há mudança.
É humano ter medo, fazemos bem em nos proteger não saindo de casa, mas como a história nos lembra, as pandemias são periódicas e não são acidentes esporádicos de percurso. D. Haraway, criticando o humanismo e, ao mesmo tempo, as ideias do pós-humano, descreve a complexidade simbiótica e reticular de nossa condição e a das outras espécies com o termo "simpoiese", que indica a qualidade de vida plural e não sujeitocêntrica (sin-poiesis, do grego "co-transformação", "co-criação"). Na
Na percepção da filosofa americana não existe em natura nenhum processo autopoiético,
A simpoiese é portanto uma condição de existência diferente tanto das formas autopoiética que daquela heteropoiética.
Uma das primeiras concepções e pressupostos da nossa concepção de mundo que Covid-19 matou é a ideia ocidental de humano. Os vírus e o principio de imunidade biológica nos mostram claramente que nunca fomos apenas humanos, nem seres separados do meio ambiente. Atualmente, estamos começando, rapidamente e dramaticamente a entender que, em vez de indivíduos autônomos, como nos imaginamos e descrevemos narcisisticamente no Ocidente, somos "com-seres" simpoiéticos, em continua mutação adaptativa.
(Continua)